quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

DRINK

POR: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

A poetisa traz-nos seu primeiro livro, porém não o entrega logo. Fica. estudando nossa expressão fisionômica antes de confiar-nos a suma de tantas vivências. Fala de coisas vagas, que se tornam mais vagas ainda pela indecisão da frase. Certa amiga comum nos manda lembranças. Podemos fornecer o endereço de mestre Fulano?? Parece que é difícil encontrá-lo em casa. Qual a melhor hora? As informações são prestadas, enquanto, por nossa humilde vez, inspecionamos a poetisa. Usa vestido elegante, sob capa elegante. É alta, morena, jovem. Um adjetivo clareia, com espontaneidade de espelho: bonita. Parece que clareou em nosso olhar, pois ela baixa a cae¬ça e contempla uma formiguinha no linóleo, onde — é claro — não passa nenhuma formiguinha. O livro continua preso na mão esquerda,sem que possamos desvendar-lhe o título: pudicamente, só aparece a brancura da contracapa. Não que haja figura ou dizeres obscenos a ocultar. A poetisa oculta sua poesia, nesse primeiro contato com o exterior. Passamos à ofensiva:
— Que é isso que você tem aí? 
— Isso, quê?
— O livro.
— Nada, não. É um livro.
— Deixe ver, se não é segredo de estado!! 
Não era, mas o inimigo contemporiza:
— Daqui a pouquinho.
O leitor, que acaso nos segue, achará a moça demasiado tímida ou esperta; com o nosso relativo conhecimento da alma literária, diremos que ela, ciente e emocionada, simplesmente retardava um momento irreparável: o momento em que seu livro deixaria o regaço materno para expor-se à condição de artigo-do-dia, olhado, pegado, comentado sem amor. Por isso a moca nos sondava antes de efetuar a doação. Acabou admitindo que publicara um livro; que trazia consigo um exemplar; que esse exemplar nos era destinado; mas não lhe pusera dedicatória e, conforme fosse a recepção, voltaria com a autora. Quisemos saber a razão de tamanha reserva. Desconversou, mas somos praça velha, e ouvimos o conto:
— Levei um exemplar ao Barata, colunista da “Folha”. 
— Então?
— Me convidou para um “drink”. 
— Que mal tem nisso, minha filha?!
— Bom... Nem olhou para o livro, olhou só para mim. Entende??
Entendíamos. — Mas o Barata, — ponderamos — não é propriamente crítico literário, e, como observa o prof. Afrânio Coutinho, há uma “big” diferença entre “reviewer” e crítico.
— Pois, sim. O Lessa é crítico e também me convidou para um “drink”. Sem abrir o livro. Será que hoje é moda beber com o autor antes de ler??
Não soubemos explicar à poetisa, e preferimos indagar se porventura os “drinks” lhe flagelam o fígado. Ela sorriu. — Eu adoro um “alexander”, um “cuba libre”. Mas pensei que não fosse preciso tomá-lo para merecer um julgamento ou uma notícia.
Tranqüilizamo-la a nosso respeito: não escrevemos sobre livros, não freqüentamos bares, não a convidaríamos a drincar. Parece que a assustou um pouco nossa austeridade romana, se é que não vislumbrou nisso um truque novo. Afinal, o braço moveu-se, o livro foi entregue. Sem dedicatória.
— Não vai escrever nada?? perguntamos-lhe. 
— Que gostaria que eu escrevesse?
— Ah!    isso você não era capaz de escrever.
Queria oferecer-nos louvores suaves, mas temia que a interpretássemos de outro jeito; queria ser seca, não podia; natural, não podia. Então, deu-nos o livro sem dedicatória e, rapidamente, convidou-nos a tomar um “drink”.

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